Aplicado o filtro por Data: Novembro 2021
Estio
EU NUNCA ESTOU SÓ... EU ESTOU SÓ O TEMPO TODO
(...) somos apenas o que somos, mas, por vezes, o que somos não é o suficiente nem mesmo para nos agradar.
Temos que ser mais, se quisermos conquistar aquilo que nos falta... óbvio, isso porque, se nos falta algo externo, é porque falta algo na gente mesmo para obtê-lo. Temos de nos tornar melhores do que nos apresentamos e, por conseguinte, abandonar a nossa singularidade e nos fragmentar, se quisermos preencher o vazio que nos aflige. Temos que ser mais, mas... nunca diferentes essencialmente, pois é importante que sejamos capazes de nos reconhecer.
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Um homem esta caminhando no acostamento de uma estrada e se sente vazio... solitário. Como um câncer, as células putrefatas da memória parecem se deteriorar a cada novo passo. Ele tenta curar a si mesmo, relembrando-as, mas sabe que parte delas já se foram para sempre... Talvez se as tivesse relatado a alguém ou as registrado num papel de pão, que seja... mas se foram.
Ele está vazio de momentos, solitário, como se a vida fosse apenas um acrescento de zeros depois da vírgula e a ponto de suas recordações se confundirem com suas fantasias ou desejos.
Porém, a noite o recebe, o envolve, enquanto o vento úmido parece abraçá-lo. A lua ilumina o que pode ser visto da estrada adiante, estrada que, há muito, tem sido seu caminho. Seus pés são como hastes firmes no asfalto e seus olhos, como o infinito oceano, misterioso, profundo e incerto. As cordas do seu violão jazem enferrujadas, enquanto a melodia parece ter se esvaído de suas mãos desacostumadas.
- Onde estará ele? — perguntei certa vez em que se armava uma tempestade.
- Onde estará ele...? — me perguntaram tanto tempo depois, em que não mais se tinha notícias...
- Onde está ele? — certo dia ela me perguntou... tarde demais.
As noites sempre foram convidativas, ao meu ver, mas, sem ele, parece que se tornaram mais solitárias.
Sinto saudades do meu amigo, sinto saudades da sua euforia e das suas músicas... Sinto falta dos momentos de êxtase, adocicados com certa melancolia e pequenas doses de mistério... A melancolia, entretanto, se foi. Hoje, o que me resta é sentar na velha poltrona onde ensaiávamos velhas canções que nunca chegamos a tocar ou encostar no barco que ainda descansa na areia da praia onde costumávamos ter longas conversas, me deleitar em recordações as quais ainda não me abandonaram... para o bem ou para o mal.
Outrora a vida era como um conto de fadas medieval, em que cavaleiros brandiam suas espadas, erguiam seus canecos e cantavam poemas sobre amores impossíveis. As donzelas ainda podiam ser encontradas nas torres de castelos suntuosos, tecendo cavalos alados em tapeçarias finas e entoando velhas cantigas, inexprimíveis em palavras atuais. Ele, do seu modo singular, era capaz de transformar um simples olhar entre dois amantes, na maior história a qual se poderia querer viver.
Lembro de um momento... era o início da primavera, época em que as paixões desabrocham nos corações, tempo de deixar um pouco de lado nossos pesados fardos, para nos perder nas estradas íntimas e sinuosas que se escondem nos pensamentos secretos... Próprios ou de outrem...
“Quero sentir sua alma, antes de permitir que a realidade interfira. - ele disse a ela, antes de beijá-la - Viva por um momento a sensação de estar sonhando um sonho bom... só um pouquinho que seja. Sinta algo que meu corpo jamais poderá lhe dar, e me deixe tocar algo aonde jamais um beijo poderá alcançar. Deixe-me ter a certeza de que a vida lhe roubou dos meus sonhos para te trazer a mim...”.
Por quase um segundo, de relance, volto os olhos para a gata que dorme em meu colo enquanto escrevo... de súbito, sou tomado pelo pensamento de que, um dia (como o dia de hoje), ela irá morrer e, tal como está de olhos fechados agora, estará um dia, num decorrer de momentos que se esgota pouco a pouco, como areia numa ampulheta...
Um relógio , atrás de mim, gira seus ponteiros mais acelerados que eu gostaria...
Chorarei, como sempre, pelos cantos, pelo vinho desperdiçado... chorarei por ela e custarei a jogar suas coisas fora, mas de sorte o farei. “Não deixe os dias passarem”, diz a canção... Tudo está em paz agora... Porque tem que ser diferente? O tempo é a nossa maldição e ignorá-lo tem seu preço.
Penso no porquê de não tocar essa música ainda, enquanto a escuto... Talvez seja porque poucas pessoas a conheçam, mas é sabido que não costumo fazer nada para agradar ninguém: nem tocar, tampouco escrever, como pode ser constatado diante desta prédica distorcida e inconstante.
https://www.youtube.com/watch?v=Iosx6flOj98
Inquietude
SENTIDO ALHEIO
SENTIDO ALHEIO
No rubor da face,
o desconcerto das atitudes
que são transparentes
como o olhar perdido no horizonte.
Nada é transcrito num caderno de memorias,
fica apenas na imaginação.
Não será lembrança de um
passado alheio.
A vergonha do nu é exposta
na alma errante,
que cambaleia pelas alamedas
de um coração fértil de emoções
contraditórias.
A noite acalanta o corpo,
a solidão é companheira.
Tudo se transforma,
tudo é o nada
que colhemos
no momento único
de um encontro,
onde o eu é o nos.
MIF 17/12/2021
Amores Virtuais
Sublime
APENAS MAIS UMA PRIMAVERA
Ah prevaleço-me de que se foi distante a minha aurora e vejo quão privilegiado sou ainda estar aqui contigo, bom, lembrar-me das belas e continuadas histórias, tantas quantas me contavam da estação das flores, que me inspiram cantá-las, as dos meus tempos vividos. Percebo que aos sinais da finda e fria que antecede, brotam tímidas e sem anúncio as violetas de lapela, e as novas folhas das gramíneas e dos bambuzais, arte da natureza, ensaiando a floração da primavera, visto nos tenros brotos e botões esculpidos nos roseirais. Sem ranhetice fico aguardando ano após anos pacientemente esse momento mágico e grande, sempre com aquele olhar menino; e ver surgindo enfeitando os jardins; exuberantes gladíolos, cravos, íris e jasmins rodeados de brancas margaridas, esfuziante saudação setembrina, data incomensuravelmente bela. Nalguns arbustos, o vigor reflorestado para o tempo fruto, nos galhos das amoreiras casulos se contorcem sem ais, bailado frenético que culminará em explosão viva de belos seres em voos numa variedade incalculável de borboletas tropicais. É o ápice desses momentos vividos, único e indivisível, campos, montanhas e serrados ganham pinceladas de cores, nuances verde em dégradé e nos salpicos coloridos das flores. Na fábula da prudente formiga, desperta a cigarra novamente, é a primavera aguçando o sentido do poeta que a saúda com seu canto, não mais dorme, não mais chora, cessam as lágrimas do seu pranto ficam só as cores das flores douradas pelo sol das tardes quentes. Fim da hibernação nos botequins aquecidos pelos conhaques e das longas e negras noites, agora é céu estrelado em azul anil. Cessam as madrugadas frias em conluio com as chuvas finas, as almas abstêm-se de álcool, embebedam-se com o perfume do ar. As bocas e os corações sorriem, é tempo de a alegria dominar, tantas palavras ainda pra dizer, mas é apenas mais uma primavera.
O Poema
A Anatomia do Sonho
O sonho propõe as obscuras estórias da consciência
Que vai navegando nas ocultas dimensões sonhadas
Renovado pelo oblívio que traz a luz de cada manhã
O sonho vem das encantadas linhas das constelações
Abre espaços no cerne fugidio do que se acha ser real
Nutre-se da própria negação na cor da flama primeva
Nele o outono chega inaugurando tempos de bronze
Transmutando por brandura os espectros da agonia
Para seguir embriagado a linha prata do arco da lua
Um pássaro a cantar comemora a colheita da cevada
Um homem celebra no vinho astúcias e esplendores
O poeta remove da alma os soluços não consolados
Enfim o verão se foi, mas não seu rubor, seu ar febril
Deixou ainda nas nuvens da tarde vergéis de trovão
Como um tropel a anunciar que a noite se aproxima
Pensamentos marcham nos pátios desertos da mente
Por arcadas solitárias busca o amor ávido encontrar
Seu lugar e frutos, acolá dos muros, livre de grilhões
Quase a terminar o sonho, eis que afinal surges, nua
Nada a ocultar o corpo esguio, doce flor de tentação
Vejo diante de meus olhos um quê infindo de desejo
No meu sonho, te empresto das flores seus perfumes
Do vento imitamos seus movimentos em nosso galope
Ao fim do amor nos legamos sentir o reverso do tempo
Percebo teu calor ao meu lado nesse sentimento vivo
de meus pássaros selvagens terem habitado teu corpo
Insensível a tudo, o dia reclama, é a hora de despertar
O regato murmura, nas estradas margeadas de árvores
Tem um rumor de infância, eis afinal o que deixamos:
A inocência rasa, na descoberta do amor enfim revelado
Desconstruído
Tateio as mãos a buscar essa figura de súcubo à meia luz